A Terra é o único planeta conhecido por abrigar vida, um fato que intriga os cientistas há muito tempo. Enquanto Vénus e Marte apresentam condições extremas, o nosso planeta beneficia de oceanos, de uma atmosfera estável e de uma temperatura moderada. As chaves desta singularidade podem residir nos processos internos da Terra, bem além do que se pode observar na superfície.
Estruturas gigantes, chamadas superpenachos, LLSVP, ou "grandes províncias de baixa velocidade de cisalhamento" e zonas de "velocidade ultrabaixa", estão enterradas a cerca de 2.900 quilómetros de profundidade. O seu tamanho imenso e as suas propriedades únicas, como a desaceleração marcada das ondas sísmicas, indicam uma composição química distinta. Estas anomalias podem ser vestígios dos processos de formação da Terra, oferecendo pistas sobre a sua evolução precoce.
A ilustração mostra um corte do interior da Terra primitiva com uma camada fundida acima do limite núcleo-manto. Materiais do núcleo teriam vazado e misturado com esta zona, contribuindo para a estrutura irregular do manto observada hoje.
Crédito: Yoshinori Miyazaki/Rutgers University
Há milhares de milhões de anos, a Terra estava completamente coberta por um oceano de magma. Os cientistas pensavam que o arrefecimento conduziria a uma estratificação química nítida do manto, semelhante à separação de fases num líquido. No entanto, os dados sísmicos mostram uma ausência desta estratificação, com acumulações irregulares perto da base do manto. Esta contradição motivou novas pesquisas para explicar a estrutura atual.
Um estudo recente publicado na
Nature Geoscience avança a ideia de que elementos químicos migraram do núcleo para o manto durante milhares de milhões de anos. Esta fuga, envolvendo nomeadamente silício e magnésio, misturou as composições e impediu uma estratificação clara. Assim, os superpenachos podem representar os vestígios de um antigo oceano de magma enriquecido pelo núcleo, oferecendo uma explicação coerente para as observações.
Estas interações profundas entre o núcleo e o manto têm implicações maiores para a evolução da Terra. Elas influenciam o arrefecimento planetário, a atividade vulcânica e até a composição da atmosfera. Isto pode explicar por que a Terra possui oceanos e vida abundante, enquanto Vénus é uma estufa ardente e Marte um deserto gelado. A maneira como um planeta arrefece e evolui internamente desempenha um papel chave na sua habitabilidade.
Além disso, estas estruturas do manto profundo podem alimentar pontos quentes vulcânicos como os do Havai ou da Islândia. Isto estabelece uma ligação direta entre os processos internos e os fenómenos de superfície. Combinando dados sísmicos, a física dos minerais e a modelagem geodinâmica, os investigadores reconstroem pouco a pouco a história da Terra, transformando pistas dispersas num relato coerente da sua evolução única.
Esta abordagem multidisciplinar permite resolver enigmas antigos sobre a formação planetária. A ideia de que o manto profundo conserva a memória química das interações precoces abre novas perspetivas para compreender por que a Terra é tão especial. Cada descoberta acrescenta uma peça ao puzzle, reforçando a nossa compreensão dos mecanismos que moldaram o nosso mundo habitável.
Os superpenachos
Os superpenachos, ou grandes províncias de baixa velocidade de cisalhamento, frequentemente abreviadas como LLSVP, são estruturas massivas localizadas na base do manto terrestre, a cerca de 2.900 quilómetros de profundidade. Encontram-se principalmente sob a África e o oceano Pacífico. A sua particularidade é reduzir a velocidade das ondas sísmicas de cisalhamento, o que sugere que são compostas por rochas mais densas e provavelmente mais quentes. Estas anomalias são detetadas através da tomografia sísmica, uma técnica que mapeia o interior da Terra analisando a propagação das ondas geradas pelos terramotos.
A presença destes superpenachos questiona os modelos tradicionais de formação do manto. Inicialmente, pensava-se que o manto devia estratificar-se em camadas de composição homogénea durante o arrefecimento da Terra. No entanto, os superpenachos mostram uma heterogeneidade química, com acumulações de materiais que não foram misturados uniformemente. Isto indica que processos dinâmicos, como correntes de convecção ou interações com o núcleo, perturbaram a estratificação esperada.
Estas estruturas desempenham um papel importante na dinâmica interna da Terra. Podem influenciar a convecção do manto, que é responsável pela deriva dos continentes e pela atividade vulcânica. Além disso, podem estar ligadas à formação de pontos quentes, onde o magma sobe à superfície, criando vulcões como os do Havai. Compreender os superpenachos ajuda, portanto, a explicar não apenas a estrutura profunda da Terra, mas também alguns fenómenos geológicos de superfície.
O impacto das interações núcleo-manto na habitabilidade
As interações entre o núcleo e o manto são um processo contínuo que afeta a maneira como a Terra arrefece e evolui. Quando elementos químicos, como o silício e o magnésio, escapam do núcleo, misturam-se com o manto. Esta mistura altera a densidade e a viscosidade das rochas, o que pode modificar as correntes de convecção. Estas correntes são essenciais para o transporte de calor desde o interior para a superfície, regulando assim a temperatura global do planeta.
Este arrefecimento controlado é importante para a manutenção de uma atmosfera estável e de oceanos líquidos. Na Terra, a taxa de arrefecimento permitiu a formação de uma crosta sólida e o desenvolvimento de condições favoráveis à vida. Em comparação, Vénus, que pode ter tido interações núcleo-manto diferentes, tem um efeito de estufa incontrolável, enquanto Marte, mais pequeno, arrefeceu demasiado rapidamente, perdendo a sua atmosfera. Assim, os processos internos ditam em parte o destino climático de um planeta.
Além disso, as fugas do núcleo enriquecem o manto em elementos que podem favorecer a atividade vulcânica. Os vulcões libertam gases para a atmosfera, contribuindo para a sua composição. Na Terra, isto ajudou a criar uma atmosfera rica em azoto e oxigénio, propícia à vida. Sem estas interações, a Terra poderia assemelhar-se às suas vizinhas estéreis. Estudar o núcleo e o manto ajuda-nos a compreender os fundamentos da habitabilidade planetária.
Fonte: Nature Geoscience