O auto-acoplamento do bosão de Higgs é um fenómeno através do qual o Higgs interage consigo próprio e que pode manifestar-se nas colisões de partículas do LHC no CERN, pela produção de pares de bosões de Higgs. Este auto-acoplamento interessa no mais alto ponto aos físicos e às físicas porque poderia fornecer uma sonda de uma sensibilidade inédita para pesquisar a influência de partículas ainda desconhecidas.
Graças ao desenvolvimento de técnicas de aprendizagem automática e à acumulação cada vez mais eficaz de dados de colisões pelos detetores de partículas ATLAS e CMS, a sua medição, considerada impossível há apenas alguns anos, parece hoje estar a desenhar-se. Explicações.
O detetor ATLAS do LHC. As duas pessoas em baixo da imagem dão uma ideia das suas dimensões.
Imagem: CERN
A pesquisa no LHC tem belos dias pela frente: 16 anos após o arranque do maior colisionador do mundo no CERN, as colisões de partículas no coração dos grandes detetores ATLAS e CMS continuam a revelar os seus segredos, gota a gota, sobre essa misteriosa partícula que é o bosão de Higgs.
Este bosão, descoberto em 2012 pelas duas grandes colaborações internacionais de físicos e físicas, é antes de mais a manifestação corpuscular do campo de Higgs, cuja interação com as outras partículas elementares lhes confere a sua massa. Treze anos após a sua descoberta, ele permanece envolto em muitos mistérios, e é sobre um dos mais teimosos entre eles que o véu começa a levantar-se: o do auto-acoplamento do bosão de Higgs, fenómeno através do qual a partícula interagiria consigo mesma para gerar um par de bosões de Higgs.
Esta interação, prevista pelo Modelo Padrão
1, é de uma tal raridade e tão complicada de discernir dos outros eventos gerados no LHC, que não tinha qualquer hipótese de ser medida com precisão suficiente pelas experiências ATLAS e CMS. Pelo menos, era isso que a comunidade de físicos e físicas de partículas pensava há não muito tempo.
Ao otimizar a todos os níveis a caça aos pares de bosões de Higgs, os cientistas estão a mudar o panorama. Lentamente mas seguramente, à imagem dos
resultados recentemente obtidos pela colaboração ATLAS, a medição do auto-acoplamento está a tornar-se mais precisa.
Para bem compreender do que se trata, é preciso saber que cada colisão de protões no coração do LHC gera uma miríade de partículas secundárias, que interagem entre si, desintegram-se e criam novas partículas. Neste caos, os físicos estudam o que chamam o "acoplamento" das partículas. Eles medem o quanto cada uma delas interage com as outras. E entre os múltiplos acoplamentos possíveis, eles interessam-se particularmente por aqueles que envolvem o bosão de Higgs.
A teoria prevê de facto que existe uma correlação entre a intensidade do acoplamento com o Higgs e a massa das partículas. Previsão que se confirmou efetivamente no LHC junto de algumas das partículas mais massivas do Modelo Padrão, como o quark top, que interage muito fortemente com o bosão de Higgs. Mas o que se passa com o bosão de Higgs em si?
Se ele tem uma massa, é porque teoricamente deve interagir consigo próprio e os físicos gostariam de ter a certeza disso. Seria para eles uma bela maneira de verificar se as previsões do Modelo Padrão da física de partículas continuam a ser implacavelmente exatas.
Por outro lado, se desvios surgissem ao nível desta interação muito particular, eles trairiam de facto a existência de novos fenómenos físicos passados até agora despercebidos. Fenómenos que poderiam apontar para a existência de partículas ainda desconhecidas ou ainda contribuir para explicar a assimetria entre a quantidade de matéria e de antimatéria observada no Universo. Como a massa do bosão de Higgs é conhecida com precisão, a do seu auto-acoplamento é fácil de deduzir e bastaria, em teoria, escavar os dados do LHC para a verificar. Mas é aqui que as coisas se complicam.
A formação de pares de bosões de Higgs é um mecanismo muito raro, 1000 vezes menos frequente do que a formação de bosões de Higgs isolados. O mecanismo mais comum provém da fusão de dois gluões (cf imagem acima). A constante de acoplamento, notada K lambda, caracteriza a intensidade da auto-interação.
Fonte: Colaboração ATLAS.
Os físicos têm de facto de detetar entre o intenso ruído de fundo produzido nas colisões do LHC, pares de bosão de Higgs, uma das manifestações esperadas do auto-acoplamento. Mas este processo é muito raro e para complicar as coisas, é impossível detetá-lo diretamente, porque os Higgs se desintegram demasiado depressa para serem detetados pelos detetores de partículas.
Os cientistas têm portanto de proceder indiretamente, pesquisando os produtos da sua desintegração. Eles estudam para isso três "canais" de desintegração: o canal "bbbb" onde 4 quarks b são gerados ao mesmo tempo, de longe o mais comum mas também o mais difícil de discernir, o canal "bb TT" onde dois quarks b jorram com dois leptões tau, mais raro mas mais fácil de discernir, e finalmente o canal "bbγγ", de longe o mais raro dos três, mas o mais fácil de distinguir, onde a desintegração dos dois Higgs produz 2 quarks b e 2 fotões gama.
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O que torna a nossa tarefa tão árdua, é a extrema raridade dos eventos que procuramos observar, comenta Nicolas Berger, investigador no LAPP (CNRS/USMB) e membro da colaboração ATLAS.
Sobre os milhares de milhões de colisões registadas no segundo período de exploração (Run 2) do LHC entre 2015 e 2018, estimamos que apenas um punhado será na origem de um par de Higgs que se desintegra no canal que privilegiamos, o canal 'bbγγ'
. A nossa primeira prioridade nesta demanda do auto-acoplamento é portanto aumentar significativamente a quantidade de dados disponíveis".
Os cientistas pesquisam nos dados dos detetores as assinaturas correspondentes à desintegração de pares de bosões de Higgs. Três variantes são principalmente pesquisadas: a mais rara, 0,3% dos pares emitidos, nomeada "bbYY", corresponde a 2 quarks bottom emitidos ao mesmo tempo que 2 fotões gama; a mais frequente, 34% dos casos, "bbbb" resulta na emissão de 4 quarks bottom; a intermédia, 7% dos casos, "bbTT" onde 2 quarks bottom jorram ao lado de 2 leptões Tau.
Acima, neste evento registado no detetor ATLAS no CERN, distingue-se bem a emissão simultânea de dois quarks bottom (cones azuis) e de dois fotões gama (traços amarelos) características do canal bbYY. Existem igualmente outros canais estudados e no final será a combinação de todos, que permitirá remontar até ao valor do auto-acoplamento do bosão de Higgs.
Fonte: colaboração ATLAS.
E para lá chegar, todos os meios são bons. Assim, na sua última publicação, os membros da experiência ATLAS não se contentaram em analisar os 168 fb
−1 2de dados provenientes do run 3 do LHC, em curso desde 2022, eles também reanalisaram os dados do Run 2 com a ajuda de técnicas de aprendizagem automática novas para aí desmascarar eventos de auto-acoplamento passados despercebidos. Trata-se de técnicas de etiquetagem das partículas e de categorização dos eventos, baseadas em redes neuronais em grafos e
transformers.
Técnicas cada vez mais utilizadas em física de partículas como testemunha o outro
resultado recente da pesquisa da desintegração do bosão de Higgs em par de quarks charm pelo CMS. Resultado, a publicação ATLAS sobre o estudo do auto-acoplamento no canal "bbγγ" apoia-se num total de 308 fb
−1. Um primeiro passo que dá o tom, mas que deixa os cientistas ainda longe da meta.
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Se queremos conseguir impor restrições estritas sobre o auto-acoplamento do Higgs, precisamos de melhorar outros aspetos, como a nossa capacidade de recolher os dados, os nossos métodos de seleção, de análise ou ainda de armazenamento preciso Olivier Davignon, investigador no LLR (CNRS/Ecole Polytechnique) e membro da colaboração CMS.
Desenvolvemos por exemplo algoritmos de disparo mais performantes estes últimos anos. Eles permitem-nos selecionar melhor os eventos promissores para os analisar depois.
Assim, desde a tomada de dados do ano de 2023, algoritmos visando explicitamente a produção de pares de bosões de Higgs ou um modo de produção particular de bosões de Higgs permitem-nos aumentar sensivelmente a quantidade de dados disponível a termo para as nossas análises. Estes dados adicionais são temporariamente postos de lado para serem postos em forma ("reconstruídos") para as análises, alguns meses após os recolhidos com os algoritmos clássicos.
Juntas, estas astúcias começam a dar os seus frutos e os resultados da publicação ATLAS ressentem-se disso. Os limites colocados hoje sobre o valor do auto-acoplamento do Higgs baseando-se apenas no canal "bbγγ" são da mesma ordem de grandeza que os colocados vários anos antes apoiando-se no conjunto dos três canais disponíveis no conjunto de dados do Run 2. A tomada em conta próxima de canais adicionais pelas experiências ATLAS e CMS não deixará de apertar mais estes limites. Quanto à obtenção de um valor preciso?
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Tendo em conta a extrema dificuldade em distinguir o sinal do auto-acoplamento do bosão de Higgs, só podemos esperar continuar a apertar os limites deste valor ao longo dos próximos anos, no final do Run 3 e com o HL-LHC, responde Nicolas Berger
. Mas mantemo-nos otimistas! Novas estimativas indicam-nos que a sensibilidade alcançada pelas nossas experiências durante a exploração do HL-LHC poderá ser duas vezes superior à que prevíamos há apenas cinco anos, para a mesma quantidade de dados, e isso apenas graças aos progressos registados na análise dos dados. Quem sabe o que poderemos alcançar se as nossas técnicas de análise continuarem a melhorar ao mesmo ritmo? É no entanto muito possível que apenas um novo acelerador do tipo FCC-hh nos permita medir com precisão o auto-acoplamento do bosão de Higgs".
Notas:
1 Modelo padrão da física de partículas, conjunto de equações que descrevem as partículas elementares e as suas interações com uma precisão até agora nunca posta em causa.
2 O femtobarn é uma unidade que representa a quantidade de colisões protão/protão tomada em conta.
Fonte: CNRS IN2P3